by Luciana Arfelli
Published on: Feb 3, 2004
Topic:
Type: Opinions

No mês de agosto de 2003, Marrocos hospedou o II Congresso Mundial da Juventude, que reuniu aproximadamente mil jovens, entre 15 e 25 anos, representando mais de 140 países.

Mais do que apenas discutir clichês, o Congresso foi uma oportunidade de por à prova a tolerância, a solidariedade e a cultura de paz entre os países.

Participei do evento como jovem jornalista, correspondente para o Brasil, integrando uma delegação de mais 11 jovens brasileiros. Foi uma experiência fantástica, sem dúvida, que não ouso começar a relatar sem antes contextualizar o país, sua cultura, tradições, seus habitantes e, claro, sua juventude (nossos anfitriões); tendo como base as conversas, observações e andanças por Marrocos.

Tratar o congresso de forma isolada acaba dando margem para interpretações errôneas e julgamentos precipitados de tudo o que aconteceu por lá.

Veneração, religião e cor

Um pouco de história — “Estado do bem-estar moderno”: é assim que o Reino de Marrocos (monarquia constitucionalista situada no extremo noroeste da África e um dos últimos três reinos que ainda existem no continente) se apresenta para o mundo. Mas nenhum desses termos é adequado para classificar o país se você estiver fincado no pensamento ocidental. Para entender Marrocos – e não julgar –, é necessário desprender-se de todos os conceitos, bases e paradigmas da cultura românica e se transportar para o ano 6.000a.C, quando os berberes, primeiros habitantes da região, estabeleceram-se no país; ou ainda entre os séculos VII e VIII, quando Marrocos foi convertido ao islamismo e unificado como reino pelo chefe árabe Idris ibn Abdallah.

Governo - A chamada monarquia constitucionalista marroquina significa que o Rei (no momento, Mohamed VI, que assumiu o posto de seu pai, Hassan II, morto em 1999) detém o poder e a autoridade do Estado. Apesar de parecer um tanto despótica e absolutista, a monarquia é um dos principais orgulhos para o povo do Marrocos. Além disso, a ascensão ao trono por Mohamed VI é motivo de alegria para a população, pois foi a partir daí que o país iniciou um processo de abertura econômica e cultural que continua até hoje.

Transitar pelo país (seja qual cidade for) é no mínimo curioso: não há lugar onde o rei não se faça presente (mesmo que essa “presença” traduza-se apenas em fotografias, cartazes e outdoors) e não há marroquino (pelo menos os tantos que tive a oportunidade de conversar) que não sinta uma ponta de orgulho de sua família real.

Religião - O único poder capaz de superar o do rei é o do Islamismo, religião de quase 99% da população. Apesar de todo o processo de modernização pelo qual o país vem passando nos últimos anos, é comum (e diria mais, emocionante!) ver mulheres indo ao cinema na cidade de Rabat usando o caftan (véu para cobrir o rosto) ou homens em um cyber-café de Casablanca vestindo djelaba (véu e túnica tradicionais).

E o mais fascinante de tudo é o contraste de opiniões que isso causa: muitos europeus e latino-americanos sentiam pena da “pobre mulher marroquina, obrigada a cobrir-se quase por inteiro em pleno sol de 40ºC”. Enquanto isso, a “pobre mulher” sentia-se orgulhosa por ser “escolhida por Allah e por acreditar que a beleza maior está no interior da pessoa, e não no corpo à mostra”.

No Marrocos, o Islã se faz presente a cada momento... É como se as pessoas fizessem parte da religião e não o contrário. É comum, pelo menos cinco vezes ao dia, escutar do minarete principal da mesquita de cada cidade um chamado para as orações. O mais curioso é que muitas pessoas simplesmente largam seus afazeres, sua tenda de chá, barraca de artesanato e vão direto para o local da reza.

Juventude – Com todos esses elementos culturais e religiosos tão presentes na vida dos marroquinos, é difícil imaginar a vida dos jovens por lá. Mas é mais simples do que parece. O jovem marroquino – assim como de qualquer lugar do planeta – é aberto a novas experiências, culturas e não perde a oportunidade de se divertir.

A classe abastada fala fluentemente o francês e o inglês, está integrada às novas tecnologias e meios de comunicação. E o mais surpreendente: tem grande conhecimento de geopolítica, economia e relações internacionais.

Mas o acesso à cultura é restrito à classe alta. A juventude das camadas mais pobres está cada vez mais deixando o país para tentar a vida no exterior. Muitos estão trabalhando (muitas vezes ilegalmente) em países europeus como Portugal, Espanha e França – em função da falta de emprego e perspectiva de vida: “Infelizmente não há muita esperança de ascensão para o jovem aqui”, reconheceu o jovem Hasni Marouane, lembrando que Marrocos compra tecnologia pronta e não investe nas indústrias e capacitação de pessoal. “As ofertas de emprego ainda estão restritas ao setor agrícola, o que não corresponde mais às
expectativas dos jovens de hoje”.

Para tentar mudar essa situação (ou pelo menos amenizar seus efeitos), várias organizações e grupos de voluntários surgiram no Marrocos nos últimos anos. Uma delas é o Fòrum des Jeunes Marocais - ou Fórum dos Jovens Marroquinos -, que juntamente com a ONG britânica Peace Child Internacional, financiamento do Rei de Marrocos e apoio da Organização das Nações Unidas (ONU) hospedaram o II Congresso Mundial da Juventude.

Antes de começar a falar sobre o evento, vale ressaltar que a juventude marroquina, apesar de estar vivenciando um turbilhão de transformações culturais e sociais ainda mantém uma visão conservadora no que diz respeito a alguns temas como o homossexualismo (tratado como um tabu que não deve nem ser mencionado) e o sexo antes do casamento.

Entender a maneira como os jovens e o povo marroquino em geral encaram determinados valores ajuda a entender um pouco melhor o que foi o Congresso da Juventude e todas as discussões, festas, conflitos e emoções que aconteceram por lá.

Tolerância, solidariedade e sustentabilidade em foco

O II Congresso Mundial de Jovens aconteceu entre os dias 16 e 28 de agosto nas cidades de Bouznika e Casablanca, e teve como tema “Promovendo a tolerância, a solidariedade e a liderança juvenil em ações sustentáveis”. O evento visou à inclusão da juventude mundial nas discussões para a consolidação das oito Metas do Milênio, aprovadas em Assembléia Geral da ONU em novembro de 2000 (veja quadro 1, no final do texto).

O Congresso foi a segunda parte de uma seqüência de encontros que teve início em 1999, no Havaí e que terá suas próximas edições em 2005, na Escócia; 2007, na Índia e 2009, de volta ao Havaí.

Os mais de mil jovens que estiveram reunidos no complexo esportivo e cultural do Ministério do Esporte e Juventude de Marrocos, em Bouznika (a cerca de 80km da capital marroquina, Rabat) mal imaginavam que estavam sendo o centro das atenções de todo um país (pelo menos não até perceberem a constante presença da imprensa marroquina os acompanhando diariamente aonde quer que fossem...).

Pela primeira vez na história, o reino se abria para receber tantos estrangeiros de uma só vez. “A escolha de Marrocos como sede de um dos mais importantes fóruns de jovens do mundo garante uma excelente oportunidade para diálogo e integração, mostrando que pode haver coexistência pacífica, tolerante e harmônica entre culturas tão distintas, porém unidas por um mesmo ideal”, disse o rei Mohamed VI, em carta enviada aos participantes.

A organização do evento demonstrou uma enorme preocupação com a segurança — os participantes só podiam sair do complexo de Bouznika escoltados!(veja quadro 2, no final do texto) —, alimentação, comunicação e transporte. Era visível que o governo marroquino se esforçou para mostrar ao mundo que o país podia ser tão “ocidental” quanto quisesse e que abrigar jovens cidadãos do mundo não era tarefa das mais difíceis.

Além dos dias passados no complexo, os jovens foram divididos em grupos e, durante cinco dias, tiveram a oportunidade de visitar outras cidades e regiões do país, trabalhar e dar sua contribuição para projetos sociais que estão sendo desenvolvidos nas localidades visitadas, ou simplesmente conhecer de perto as diferentes realidades em que vive o povo marroquino e fazer uma espécie de “turismo social”.

Choque de culturas - Mas nem tudo são flores, e a diversidade por vezes acaba gerando conflitos. As diferenças culturais começaram a vir à tona quando tiveram início os primeiros debates para a preparação da Declaração de Casablanca – documento oficial do evento contendo compromissos, missões e expectativas da juventude mundial sobre as metas do milênio e os temas debatidos no congresso.

Os latino-americanos apresentaram uma proposta de emenda em que incluíam a liberdade de orientação sexual no preâmbulo do documento. Foi o suficiente para que jovens fundamentalistas islâmicos enfurecidos protestassem contra a “imoralidade dos infiéis ocidentais”. A partir desse momento, a relação entre alguns participantes muçulmanos e não-muçulmanos ficou abalada até o final do Congresso.

Outro foco de conflito aconteceu entre as delegações de Israel e Palestina, que começaram a demonstrar o ódio e rancor que carregam por gerações. A até então “aldeia global” acabou se transformando em uma Faixa de Gaza em pequena escala.

Em um dos momentos mais tensos, quando a violência física estava prestes a ser usada, Ziv Weibel, delegado israelense, gritava tentando amenizar a situação: “Eu não sou o meu país, eu não sou o meu governo, não tenho nada a ver com Ariel Sharon! O que vocês querem de mim? Estou aqui lutando pela paz, como vocês. Por que me agridem?”. Enquanto isso, palestinos agregavam participantes marroquinos, argelinos e egípcios em um grande coro: “Arábia, Arábia”!
Mesmo com toda a tensão, o Congresso prosseguiu e manifestações pela paz tornaram-se cada vez mais freqüentes.

O último dia do evento foi reservado para a cerimônia de encerramento que contou com a presença da princesa Lalla Hasna (irmã do rei Mohamed VI), do vice primeiro ministro escocês, Ewan Robson, do representante da ONU, Kunio Waki, entre outras autoridades. O dia foi também reservado para a votação da Declaração de Casablanca, o que acabou gerando controvérsias entre os participantes pela forma como foi conduzida: “Não houve democracia, de maneira alguma. Em primeiro lugar porque retiraram à força da sala de votação o delegado de Israel, em segundo porque, como a declaração pôde ser aceita se apenas 26, dos mais de 100 países votaram a favor?”, questionou Anna Kaxira, delegada grega. “O processo de votação foi confuso, desorganizado e injusto. Além disso, foi um absurdo a manipulação que Marrocos fez para que a declaração fosse aceita”, completou Tamoy Singh, da Jamaica.

Muitos jovens ficaram decepcionados com o fato de que 14 dias de congresso foram inúteis para que um documento legítimo e democrático, que representasse a juventude mundial, fosse aprovado e comprometeram-se a fazer uma aliança pós-congresso para revisão da Declaração e apresentação de um novo documento à ONU.

Apesar de tudo, os jovens disseram que a experiência de participar de um evento internacional, tendo de representar seu país da melhor maneira, enfrentar conflitos e ver de perto choques cultuais e a beleza da diversidade foi uma experiência inesquecível: “Foi uma oportunidade fantástica! Nunca vou me esquecer de tudo o que vivi e aprendi no congresso. Acredito que sou mais consciente agora, parece que minha mente abriu”, disse Samira Hammane, delegada da França. “Fizemos contatos para toda a vida e se temos mesmo a intenção de mudar o mundo temos que ter consciência que vamos enfrentar problemas muito maiores do que enfrentamos aqui.”, completou João Felipe Scarpelini, delegado brasileiro.

Delegação Brasileira

O Brasil marcou presença no Congresso pela alegria, engajamento e responsabilidade de sua delegação. Inicialmente formada por 10 jovens: Isis Lima Soares, Mariana Manfredi Magalhães e Talita Montiel D’Oliveira Castro, de São Paulo (SP); Luciana Gomes Alves, Luísa Gouvêa do Prado e João Felipe Scarpelini, de Santos (SP); Helena Lemos Gomes, de Guaxupé (MG); Camila Argolo Godinho, de Salvador (BA), Mariana Lima, de Brasília (DF) e Fábio Anderson Pena, de Santarém (PA), a delegação só ficou completa após ser integrada, em Marrocos, pelas brasileiras Paula Simas Magalhães e Nina Best, que estudam no Canadá: “Já conhecíamos a Paula através de contatos por e-mail e pelo processo de formação da delegação brasileira. Mas a Nina para nós foi uma ótima surpresa”, disse Luísa do Prado.

Curiosidades...

·O Brasil trabalhou, juntamente com os demais países da América Latina, na preparação de um documento alternativo à Declaração de Casablanca em que ficassem claros os pontos de vista e as necessidades dos países latinos. Foram noites sem dormir, em reuniões, e incontáveis xícaras de chá de hortelã...

·Bossa nova, samba e o Hino Nacional brasileiro marcaram presença na cerimônia cultural de abertura do evento. A própria delegação se encarregou do repertório e da performance.

·Alguns jovens marroquinos ofereciam, a todo o momento, centenas de Dirhams (moeda local) em troca dos materiais do stand brasileiro (banners, máscaras, roupas típicas, mapas...) e tentavam comprar a qualquer preço o pin com a bandeira brasileira que cada delegado carregava no crachá.

·Pelé, Romário e Ronaldinho são realmente populares em qualquer parte do mundo!

·A frase: “sou brasileiro” abre portas no Marrocos! Principalmente na hora de barganhar nas medinas (também chamadas “cidade velha” – são a parte antiga e histórica das cidades, onde ficam os mercados populares). Todos da delegação que usaram essa tática conseguiram preços bem acessíveis!

·A delegação brasileira junto com os demais latino-americanos organizaram um manifesto contra a marca Nike, presente nos cordões que seguravam os crachás dos participantes. A idéia foi convidar todos os jovens a substituir o cordão Nike por fitinhas do Nosso Senhor do Bonfim, levadas da Bahia ou fitas celeste-e-branca, levadas pelos argentinos. Mais do que aprovada a idéia, as fitinhas latinas viraram uma febre no complexo!

Contradições

Um dos temas principais do Congresso era discutir a questão da sustentabilidade do planeta, ou seja, como continuar promovendo o crescimento econômico sem acabar com os recursos naturais. Apesar disso, o evento foi uma experiência nada sustentável.

Os motivos levantados por várias delegações, entre elas a brasileira, foram, principalmente, o desperdício de comida e a falta de consciência ambiental. Cada participante consumia em média cinco garrafas plásticas de água por dia. Contando com a participação de mil jovens durante 14 dias contabilizamos 70 mil garrafas plásticas utilizadas, sem qualquer sistema de coleta seletiva disponível! Isso sem contar a quantidade de latinhas de refrigerante também jogadas no lixo comum...

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Quadro 1 -

Metas do Milênio:
-Erradicar a extrema pobreza e a fome;
-Acesso universal à educação primária;
-Promover a equidade de gênero e dar poder às mulheres;
-Reduzir a mortalidade infantil;
-Combater a HIV/AIDS, a malária e outras doenças;
-Fomentar ações em favor da sustentabilidade do ambiente
-Promover uma parceria global pelo desenvolvimento;
-Melhorar condições de natalidade.

Quadro 2-

Segurança
Após os atentados terroristas de 16 de maio deste ano, que deixaram 45 mortos e centenas de feridos em Casablanca (cidade onde os jovens participantes do Congresso ficariam), a organização decidiu mudar a concentração para Bouznika (a cerca de 50Km de Casablanca) e reforçar a segurança, principalmente porque a maioria dos participantes era menor de idade e, se não houvesse garantia de integridade física dos jovens, o evento poderia ter sido cancelado.

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