by Efraim Batista de Souza Neto
Published on: Feb 16, 2008
Topic:
Type: Interviews

Bernardo Galvão: “Foi um marco simbólico na pesquisa no país”

A década de 80 ainda não tinha terminado. Em meio à euforia que tomava conta do país, da efervescência em função do final de um longo período de ditadura militar, a Aids aparecia como um desafio para todos. Políticos, cientistas e boa parte da sociedade ainda não sabiam muito bem como lidar com a doença, até então caracterizada como particular de grupos considerados de “comportamento de risco”. Uma equipe de pesquisadores do Instituto Oswaldo cruz (IOC) do Rio de Janeiro, percebeu a dimensão do problema e aceitou o desafio de isolar o vírus HIV no país, colocando o Brasil definitivamente no circuito mundial de pesquisa em Aids. Liderando o grupo estava o pesquisador Bernardo Galvão, que conta, nesta entrevista, como foi aquele episódio, que completou 20 anos. Atualmente na Fundação Oswaldo Cruz na Bahia (Fiocruz-BA), Galvão também esteve à frente do processo de construção de uma rede de laboratórios responsáveis pela caracterização do HIV em diversas regiões do país. Para ele, na memória fica o exemplo de como uma instituição, como a Fiocruz, pôde, por estar preparada, responder a uma demanda de saúde.

CPqGm – Passados 20 anos, como avalia o fato da equipe de pesquisadores, liderada pelo senhor, ser a primeira a isolar vírus HIV no Brasil?
Bernardo Galvão – Bem, eu acho que representou o envolvimento da Fundação Oswaldo Cruz na luta de combate e controle da epidemia causada pelo HIV/AIDS. Eu acho que a coisa mais importante que ocorreu naquele momento foi a implantação, nos bancos de sangue, da triagem sorológica do HIV. A Fiocruz pode proporcionar, pelo menos, dessa implantação nos bancos de sangue. Isso sim corresponde a uma importante contribuição para a saúde pública, para a saúde de uma forma geral. Naquele momento foi possível dar essa reposta porque se instalou imediatamente a triagem sorológica nos bancos de sangue, evitando a contaminação, o que seria, caso não fosse evitado, uma catástrofe.

CPqGm - Aquele momento teve impacto efetivo na realidade social em relação a AIDS. Mas o que significou o isolamento do vírus para a ciência?
BG - O isolamento do vírus não foi uma realização científica importante. Para isolar aquele vírus, qualquer laboratório de imunologia que contasse com técnica de isolamento de linfócitos, poderia fazer, mesmo no Brasil. Aquilo foi um marco simbólico na pesquisa no Brasil. Por que faltavam alguns insumos, não para cultivar o vírus, mas para identificá-lo. E aí nós conseguimos esses insumos através de cooperação internacional, ou pesquisadores da própria fundação que trouxeram esses insumos.

CPqGm - Isso significa que a cooperação internacional foi decisiva?
BG - Logo depois do isolamento em 1983, pelo grupo pesquisadores do Instituto Pasteur, em Paris, confirmado por Gallo, em 1984. Em 1984-85, os países do primeiro mundo, todos já estavam com o vírus isolado, mas nós preferíamos, tínhamos inclusive propostas de colaboração, mas que naquela época nos denominávamos de “pesquisa safari”, ou seja, nossa participação seria colher o sangue e enviar para o exterior e depois ter os resultados. Seria ótimo para os nossos currículos, do ponto de vista pessoal, mas nos preferimos demonstrar que éramos capazes de isolar o vírus sem recorrer a esse tipo de colaboração. Afinal, a colaboração é importante quando trás benefícios mútuos. A gente era capaz de isolar o HIV , faltava apenas o insumo. Preferimos criar essa condição.

CPqGm - Que contexto era esse, que dificultava a aquisição dos insumos?
BG - A gente não tinha antígenos. . Foi graças a essas colaborações internacionais que conseguimos os mesmos. Destaque para os virologistas Peggy e Hélio Pereira, ambos de nacionalidade inglesa sendo que ele era brasileiro de nascimento.

CPqGm – Então, eram ações individuais, sem interferência (apoio) do Estado e do governo?
BG - Algumas passaram pelo Estado porque os pesquisadores representavam o Estado. Na verdade existem vários programas de governo, mas o programa nacional de AIDS foi implantado devido a ação da sociedade civil organizada que pressionou o governo, visto que o que existia no exterior repercutia no país. A AIDS, no início, atingia pessoas de classe média – alta, por exemplo, nos EUA e Europa. Mas na África, descobriu-se depois que era uma transmissão heterossexual. Nos países do Ocidente, a AIDS tinha um perfil que atingia, principalmente, indivíduos com determinados comportamentos de risco, como os homo/bissexuais masculinos,, os usuários de drogas injetáveis e indivíduos que eram forçados a tomar sangue, como os hemofílicos. Naquele momento, por exemplo, os homossexuais nos EUA eram uma minoria organizada. Além disso, a AIDS atingia pessoas de grande prestígio no mundo artístico, intelectuais e formadores de opinião.

CPqGm – Houve, de certa forma, uma parceria forte entre a comunidade científica e a sociedade civil organizada?
BG - Isso tudo ocorreu, junto com a sociedade organizada. Pesquisadores e outros formadores de opinião fizeram com que o governo criasse um programa para combater essa epidemia. O que é um exemplo fantástico de como a sociedade civil pode pressionar o governo. Inclusive a própria AIDS tem características que permitem isso. Está relacionada com o sexo, com a morte. As pessoas sabiam, que se a contraíssem, poderiam morrer. Milhares e milhares de pessoas morreram e isso trouxe uma comoção social muito grande.

CPqGm - O isolamento foi, na verdade, um grande triunfo simbólico?
BG – Sim. Mas com isolamento do vírus, o Brasil foi reconhecido no cenário intencional e foi, então, convidado a participar de comitês internacionais. Participamos de uma experiência bem interessante de redes de pesquisas, já naquela época. Nós tivemos a oportunidade de participar de uma rede internacional de laboratórios, coordenado pela OMS e o Programa Mundial de AIDS, que foi uma grande experiência. Os pesquisadores do mundo todo reunidos para combater um mal maior; com isso foi possível conhecer, rapidamente, os diferentes subtipos do HIV que circulavam em diversos países.

CPqGm - Esse fator, apesar de não ter sido um grande feito em termos científicos, foi capaz de acelerar os processo de descobertas?
BG - Com certeza ele foi capaz. Verificamos que a rede internacional de laboratórios, implantada em 1991, não iria contemplar a caracterização do vírus em todos os estados do Brasil, mas apenas em determinados lugares, como Rio, São Paulo e Belo Horizonte. Então, nós imediatamente propusemos a criação de uma rede nacional, nos mesmos moldes já existentes, contamos com apoio do Ministério da Saúde e da Organização Mundial de Saúde. Era uma rede inspirada, muito parecida, na internacional. Esta rede foi implantada em março de 1993. Trabalhos desta rede, possibilitaram a caracterização de uma maior quantidade de vírus que circulava em diferentes regiões do país. Este é um exemplo de rápida transferência de tecnologia e conhecimento que só ocorreu devido a excelente qualificação dos pesquisadores brasileiros.

CPqGm - Como essa experiência ocorrida há 20 anos serve de modelo para pensar o hoje? Que exemplos ela nos dá para enfrentar outras epidemias/doenças emergentes?
BG – Acredito que devemos reforçar continuadamente a infra-estrutura institucional. Por exemplo, no final da década de 70, início dos anos 1980, a Fiocruz obteve recursos da ordem de 1 milhão de dólares americanos, resultante de um projeto aprovado pelo programa TDR (sigla em inglês de Tropical Disease Research) da OMS. Este projeto possibilitou a implantação de Centro de Imunologia Parasitaria na Fiocruz, RJ. Investimos também num plano de formação de pessoal, de curto e longo prazos, e dotamos esse centro de toda a infra-estrutura, igualando aos melhores laboratórios do mundo naquela época, tornando-se um pólo de atração para pesquisadores, principalmente recém doutores que estavam retornando para o Brasil. Para a elaboração deste projeto, contamos com a colaboração do Professor Paul Henri Lambert, meu orientador de doutorado realizado em Genebra.

CPqGm – Vocês acumularam experiência, se prepararam para isso.
BG – Sim. O que a gente propõe para que um país como o nosso possa se preparar para enfrentar doenças emergentes é equipar seus laboratórios, ter uma boa infra-estrutura e projetos bem planejados. É preciso também fazer “animação”, ou seja, estimular, e possibilitar a atualização continuadamente da equipe de trabalho.

CPqGm - A partir daí, foi mais fácil montar rede de laboratórios.
BG - Isso tudo desdobrou em uma rede, que transcendeu a Fiocruz, envolvendo pesquisadores de todo Brasil. Vários laboratórios participaram desse esforço nacional de isolamento e caracterização do HIV, trazendo uma visibilidade muito grande da pesquisa feita em AIDS no Brasil. Porque com a formação dessa rede, pôde-se rapidamente dar resposta e fazer pesquisa de boa qualidade, e comprometida com a saúde pública. O que possibilitou a publicação de diversos trabalhos. Você pode perceber que os pesquisadores que participaram desse programa foram os mais citados, trabalhando ou vivendo na América Latina ou Caribe, no período entre 1999 a 2005.

CPqGm - Quais são os desafios para a pesquisa com AIDS no Brasil e no mundo, principalmente agora depois da falha da vacina da Merck?
BG - A vacina é sempre um desafio porque a infecção causada pelo HIV apresenta uma fase crônica assintomática e de transmissão sexual. Se você olhar, era uma infecção que atingia, principalmente, determinados grupos de comportamento de risco, mas hoje ela é tida como de transmissão heterossexual tornado-a de difícil controle. Por isso uma vacina eficaz vacina eficaz seria a solução. Infelizmente varias tentativas de obtenção de vacinas foram infrutíferas. O outro desafio é a busca de drogas que possam realmente erradicar a infecção.. Eu acho que a terceira coisa mais importante é reforçar os programas de prevenção. Você tem que sensibilizar as pessoas. Embora a disseminação do HIV no Brasil tenha diminuído, os índices de contaminação entre os jovens aumentaram. Que isso significa? Uma das razões para justificar isso, é que os jovens não viveram o momento trágico da AIDS. Porque antes as pessoas conheciam alguém que tinha sido vítima da AIDS. Isso causava um certo temor. Eu vejo que o grande desafio é descobrir como sensibilizar esse grupo de pessoas sobre essa doença tão grave.

CPqGm - Como o senhor pensa os indivíduos nesse processo? Dos pesquisadores que participaram da pesquisa naquele momento?
BG - Eu acho que o entusiasmo dos pesquisadores foi muito grande. Porque em um determinado momento você tinha preconceitos das pessoas lá fora e de algumas pessoas do próprio laboratório. Tinham medo de trabalhar com algo desconhecido. Na realidade, não precisávamos ser visionários para perceber que o HIV/AIDS se tornaria uma pandemia, envolvendo todos os paises do mundo. Sabíamos que o HIV iria se disseminar rapidamente. A rápida resposta do Brasil em relação ao controle do HIV/AIDS deveu-se ao comprometimento institucional dos servidores da Fiocruz. A instituição está acima dos indivíduos, o que possibilita enfrentar essas terríveis epidemias. Eu acho que isso é uma cosia espetacular, que contribui para a perenização desta instituição centenária, vanguarda na luta para a melhoria da saúde da população nacional.

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