by Efraim Batista de Souza Neto
Published on: Nov 29, 2007
Topic:
Type: Opinions

Estamos vivenciando uma profunda crise de valores, uma verdadeira crise civilizatória. A partir do boom populacional da Terra, estudiosos de diversos países constataram que o planeta está com déficit de qualidade ambiental e desenvolvimento sustentável. Tal consciência por si só já justifica um projeto pedagógico de educação ambiental e de discussões que demonstre a relevância que os recursos naturais, em especial os recursos hídricos, possuem para a manutenção da vida na Terra. Segundo o filosofo francês, Félix Guattari, a nossa atual situação pode ser entendida como a crise das três ecologias: a social; a ambiental e a tecnológica.

Concluir que este modelo de sociedade, alicerçado há anos na exploração de seres humanos por outros seres humanos, além da intensa exploração da natureza, em especial dos recursos hídricos, por uma restrita elite mundial, não nos serve mais é o ponto de partida de toda a nossa discussão. Estender esse modelo de produção e consumo a todos os seres humanos é impossível, na verdade inviável, devido aos limites dos bens naturais em nosso planeta. Para sustentar este modelo existente e incorreto, é necessário restringir o acesso a todas às outras pessoas. A extensão do consumo desenfreado por uns é um dos principais pontos de fomentação de conflitos pela água; enquanto uns usam e abusam do bem, outros não têm como suprir às necessidades básicas estipuladas pela Organização das Nações Unidas (ONU), que fica em torno de 20 litros de água por habitante dia.

Nos últimos dez anos ocorreram modificações significativas nas legislações da água em toda a América Latina, o Brasil foi o primeiro país a montar um Plano Nacional de Recursos Hídricos (PNRH). O PNRH tem como objetivo principal implementar uma gestão hídrica em conjunto com a sociedade. Os princípios da gestão hídrica surgem com o intuito de estabelecer um clima de cooperação entre os membros participantes dos órgãos relacionados aos recursos hídricos, formados por técnicos, sociedade civil e governantes.

O discurso sobre a água mudou rapidamente nos últimos anos. O bem antes considerado abundante e sem valor rapidamente tornou-se o “ouro azul”. O antigo modelo de apropriação utilitária da natureza deu lugar a uma visão que passou a reconhecer um valor econômico no bem natural; circunstância essa que mudará em 2008, quando a ONU declarará a água um bem de direito humano e não mais de direto econômico. Já do ponto de vista ecológico, o reconhecimento como bem de importância vital, fez com que a água seja conservada, recuperada. Com todas essas modificações, continuamos, em nossa maioria, reconhecendo a água pelo seu valor lucrativo; antes de tudo isso, existem pontuações omitidas – a água é a nossa corrente sangüínea, sem ela não há nenhuma forma de vida, e a quebra de todo o clico da água, desde a evaporação até as chuvas, é um atestado do diagnóstico de febre para o nosso planeta e para a nossa sociedade.

A ação ecológica responsável que vem sendo construída nestes últimos 30 anos ainda não alcançou o seu cume, mas já demonstra reflexos importantes na construção de uma nova cultura da água. O respeito aos ribeirinhos e à gestão participativa já ratificam o interesse conjunto pela manutenção dos mananciais. Estes são os primeiros passos necessários para o reconhecimento do valor do valor simbólico existente para cada comunidade que depende do recurso, muitas vezes não renovável, que é a água.

Para o estabelecimento de uma sinergia que traga novos rumos para os usos da água é necessário que exista um trabalho conjunto entre governo e a sociedade, e que a sociedade reconheça o seu importante papel em relação às atividades que envolvem a utilização de água.

O cuidado com o meio ambiente e o que nele está presente é um dos principais fundamentos encontrados nas diversas religiões. A natureza é tida como sagrada para os adeptos do candomblé, através dos diversos elementos extraídos dela é que se faz a ligação entre o divino e o material.

O ponto de vista do candomblé reverencia, louva, reconhece o sagrado, a manifestação do divino na natureza. Neste sentido, também é um espaço de tradição e resistência. Os adeptos do candomblé vivem uma relação profunda com a natureza; são capazes de olhar para as folhas numa paisagem com devoção, sem sentir e nem ter a coragem de destruí-la. Podemos resumir as atitudes dessa religião em uma expressão utilizada nos terreiros: “Kosi ewé, kosi omi, kosi orisa”, traduzindo do yorùbá, dialeto africano, “Sem folha e sem água não há orixá”. Assim resume a relação do meio ambiente com o candomblé.

A tradição católica utiliza folhas e o incenso em suas missas. O incenso sempre foi considerado algo muito precioso, é utilizado em todas as cerimônias, queimado diante de imagens divinas nos ritos de fé. No incenso está incluso a mirra, erva amarga, que representaria o sofrimento de Jesus como o salvador. Hoje, a resina da mirra é usada também em perfumes e em ungüentos (pasta cicatrizante para lesões provocadas pela castração, marcação a fogo, pequenas cirurgias e queimaduras.). O incenso passou a ser utilizado na liturgia após se extinguir o paganismo, somente assim o incenso encontrou o seu espaço na liturgia cristã.

A relação da igreja católica com o meio ambiente, não está ligada somente através das folhas e do incenso, mas também nos cânticos da missa e de suas divindades. E exerce, também, grande interação com a água, que até hoje, através do batismo, ainda é utilizada como um elemento purificador do espírito.

Da trilha de Gilberto Gil: “Meu divino São José, aqui estou aos vossos pés, dai-nos chuva com abundância, meu Jesus de Nazaré”, até o nosso querido Luíz Gonzaga: “Por falta d'água perdi meu gado, morreu de sede meu alazão”, já revelam o sofrimento dos nordestinos nas regiões onde falta água, e revelam a fé e força de uma população, muita vezes triste, em superar as suas dificuldades. Os trechos em destaque, das músicas citadas acima, deixam em evidência a importância que a água possui para uma determinada região do país, para a nossa cultura e imaginário.

A mudança de consciência pessoal e coletiva é um importante pré-requisito para a transformação das atitudes perante os usos da água. Desenvolver uma cultura de preservação e de consumo sustentável é necessário para lidarmos de forma não violenta com os possíveis conflitos pelo acesso à água.

É este reconhecimento que toda a sociedade necessita compreender. Somente assim colocaremos em prática a nova cultura da água, fomentada em ações que supram as necessidades físicas e agrícolas de cada região. A água é um bem singular e insubstituível, tão necessário à manutenção da vida quanto o ar que respiramos.

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